Esse post é especial pois eu amo uma personagem feminina forte. Óbvio!
Mas é um fato que elas são extremamente difíceis de criar. E, às vezes, elas são difíceis de ler também, pois nem sempre uma mulher forte é compreendida. Na verdade, uma mulher forte raramente é bem vista na sociedade, e acho que isso acaba indo para os livros.
Por exemplo, se você tem opiniões fortes, e é mulher, vão te achar arrogante. Enquanto isso, um homem de opinião forte é um homão da porra!
Uma mulher que curte sua sexualidade e sai transando com geral do Flamengo é vista como puta. Enquanto isso, homens que fazem o mesmo, pegam a mulherada geral na noite, são vistos como homão da porra!
Uma mulher que abdica de ter uma família para se dedicar à sua carreira é insensível ou tem traumas. Enquanto isso, um homem que faz a mesma coisa é, advinha? Isso mesmo, homão da porra!
Então vamos conversar sobre algumas coisas que podem nos ajudar com isso? Eu estou me baseando na minha própria experiência como mulher, nos livros que já li, e artigos de internet (veja links ao fim desse post).
Hoje vou me focar nos romances cis — pois eu acho que eles têm mais problemas de representar mulheres fortes. Mas convido vocês a trazerem outros exemplos! Comente aí!
Quando a gente fala de mulher e gênero hoje em dia, é interessante saber do que estamos falando. Margareth Atwood disse, "O que significa ser uma pessoa do sexo feminino? Em nossa era, não pensamos mais que existem apenas dois pacotes, rosa e azul. E a ciência tem apoiado isso. É uma curva. É um continuum. E sua personagem pode estar situada em qualquer lugar desse continuum". Vamos ter isso em mente durante esse post!
Quais são as 4 características das personagens femininas fortes?
Para exemplificar essas características, vou usar Katniss Everdeen como exemplo, então se você ainda não leu ou assistiu Jogos Vorazes, fique atento aos spoilers. Sempre quando tiver algum spoiler no texto, eu aviso em letras garrafais.
Primeira coisa, sua personagem precisa de defeitos, de falhas de caráter. Isso não é somente para personagens femininas, mas para qualquer personagem que você vai criar. Sua personagem Girl Power tem problemas e falha como qualquer pessoa. Isso causa a humanização dos seus personagens e faz seu leitor se apaixonar e se relacionar com eles.
SPOILER. Katniss, por exemplo, é muito ruim para fazer amigos, e quando vai para os jogos, advinha o que ela tem que fazer? Amigos, aliados, fazer as pessoas gostarem dela. Bem ela, que não confia em ninguém.
Segunda coisa, sua personagem precisa ter opiniões próprias. Uma mulher forte escuta seus próprios instintos, faz suas próprias decisões, de acordo com suas crenças e desejos. Inclusive, seus antagonistas também podem ser mulheres fortes, com opiniões fortes. Tudo bem se ela cometer erros — todo mundo comete erros. E tudo bem também se ela for influenciada a mudar de opinião. Ela não precisa ser cabeça dura e inflexível (a não ser que essa seja a sua falha de caráter).
Terceira coisa, uma personagem forte precisa viver por ela mesma. Isso não quer dizer que ela precisa ser solteira, independente — ela pode estar em um relacionamento, pode estar apaixonada, está tudo bem. Mas elas não podem ser dependentes emocionalmente de seus parceiros, precisa ter objetivos e ambições próprias. Reduzir a vida da mulher ao relacionamento é onde a maioria dos romances falha.
SPOILER. Katniss tem romances, mas as decisões dela não são focadas nos romances, e sim em sobrevivência.
Finalmente, ela precisa ser forte. Agora, esse “forte” não tem nada a ver com o tropo da “mulher maravilha”. Força não quer dizer simplesmente força física. Ela precisa ser resiliente para encarar os desafios que a narrativa vai apresentar. Só tome cuidado com o mito da “super mulher” que tudo aguenta. Isso, na verdade, é uma das grandes causas de depressão nas mulheres.
Então como podemos criar personagens femininas fortes?
Criar personagens femininas fortes não é diferente de criar personagens fortes. O problema é que algumas características que são normalmente atribuídas às mulheres são consideradas “fracas”. Isso inclusive pode ser trabalhado na narrativa.
Primeiro, dê à sua personagem emoções complexas. Uma pessoa não é calma o tempo inteiro, o que a tira do sério? Isso deve ser o seu conflito. Como sua personagem forte lida com a morte ou a decepção? Ela chora? Pois devia, pessoas fortes também choram. Complexidade e profundidade é importante em qualquer personagem principal.
Segundo, a força da sua personagem deve ser multifacetária. Força física não é tudo, e cuidado se a sua personagem feminina é construída para ser uma versão masculina. Há vários tipos de força, como inteligência, resiliência e confiança (personagens femininas confiantes geralmente são lidas como arrogantes, então isso tem que ser trabalhado).
Terceiro, dê amigas aliadas para sua personagem. Muitas personagens femininas são fortes por estarem rodeadas de homens — como é o caso de Hermione Granger. Nada contra, amamos a Hermione, mas ela não tem aliadas, e isso (sem querer) acaba dando aquela ideia de que não há cumplicidade entre as mulheres. Mulheres fortes juntas são lindas de se ver, escreva sobre como cada uma é forte de um jeito diferente.
Quarto, e mais importante, lembre-se que sua personagem é mais do que sua aparência. A objetificação da mulher nos livros e no cinema é fato consumado, gente. Tem até uma teoria sobre isso, chamada “o olhar masculino”. As mulheres, especialmente nos filmes de ação, são construídas para serem apreciadas pelo publico masculino. Então essa é uma coisa muito importante para desconstruir.
Sua personagem mulher existe sem o homem na narrativa?
Já falamos sobre características e como construir personagens femininas fortes, então agora quero chamar atenção para os tipos de livros e a relação entre autor e personagem.
Essa é uma pergunta interessante, pois as estatísticas não estão ao favor das minas. Para se ter uma ideia de quão assustador isso é, dos 288 escritores já consagrados com uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, apenas 8 eram mulheres (e nenhuma delas é negra). Isso é 3% gente.
A visibilidade das mulheres autoras é muito pequena, pois além de termos um mercado editorial imperialista, que se foca em tradução de livros, os críticos de visibilidade (em sua maioria homens) geralmente se focam em divulgar livros também escritos por homens, e talvez nacionais!
Muitos dos livros atuais traduzidos são escritos por mulheres americanas brancas, pois elas são hoje 80% do mercado editorial americano. Isso não significa que as coisas estão mudando, ou que as personagens dessas autoras sejam fortes. Na verdade, a grande maioria das histórias ainda giram em torno de personagens masculinos, e personagens femininas não complexas, que vivem em função das personagens masculinas.
Tipo, tira o Grey de 50 tons de Cinza. Primeiro, o título do livro perde o sentido. Segundo, o que mais a Anastasia tem na vida dela? Tipo, sem o Grey ela ainda estaria estocando as coisas naquela lojinha do início do filme (não li os livros, me julguem). Não tem nada de errado em você ter uma personagem apaixonada e tentando manter um relacionamento —mas a vida dela não devia girar em torno disso.
Então é isso, não é porque um livro foi escrito por uma mulher, que necessariamente vai ter personagens femininas fortes, ou pelo menos minimamente complexas. Ainda assim, a invisibilidade da autora mulher, especialmente no Brasil, é preocupante.
Se você quer escrever uma personagem girl-power a primeira coisa a se perguntar é — essa personagem existe no seu mundo da narrativa sem o parceiro amoroso ou o amigo?
Quantas mulheres há na sua narrativa?
Então, para responder essa pergunta, vou falar de "Eva. Vanguarda", meu primeiro livro, me julguem! Tenho mais ou menos 10 personagens femininas e mais ou menos 5 masculinos nesse livro. Por que isso é importante? Se você tem uma diversidade de personagens, você consegue trabalhar diversos “tipos” e esta é a questão.
Mulheres vêm em várias idades, tamanhos, raças, idades e de lugares diferentes do mundo também. Não há uma maneira somente de ser mulher, ou de ser homem (pasmem!). Na minha experiência, se você quer ter somente uma personagem feminina, e ela — somente ela — possui todas as características que você julga “girl power” — as chances são que você vai falhar. Ou então vai acabar com aquela personagem alien num mar de gente nada a ver.
Criar diversas “opiniões” do que significa ser mulher através de suas personagens vai te proporcionar uma grande liberdade para criar essas “versões” de girl power. Você pode ter uma super mãe, e uma super CEO, e uma super nerd, vidrada nos livros (ao invés de ter uma mulher que é tudo isso).
Talvez a melhor amiga da sua protagonista pode ser o oposto dela na personalidade. E quando conversam, talvez o assunto não seja somente “homens”? Tudo bem, elas podem conversar sobre homens também — mas há outros assuntos permeando a narrativa? Aqui, voltamos a pergunta anterior — sua personagem existe sem o homem da trama?
Diálogos fálicos — Sobre o que as mulheres conversam na sua narrativa?
Já notou que as mulheres nas histórias de romance geralmente conversam sobre os homens da história? E os diálogos entre os homens e as mulheres são — geralmente —sexuais? Que maluquice fálica é essa gente?
Evidentemente, devemos pensar em algumas coisas antes de sair jogando pedra nos diálogos fálicos — eles têm um propósito (algumas vezes). Diálogos servem para três coisas essenciais — mostrar quem seu personagem é, mostrar o dilema (conflito), e terceiro, mover a narrativa.
É claro que se você está escrevendo um romance, a maior parte dos diálogos vai girar em torno do casal, não tem como sair muito disso. Mas é importante que esse diálogo também revele algo da sua personagem, que mostre que ela existe na narrativa independente do romance, que ela é um ser complexo.
Também gosto quando os personagens que são amantes (ou vão ser) conversem sobre outras coisas a não ser sexo. Eles podiam falar sobre arte, sobre música, sobre qualquer outra coisa a não ser sexo. Ok, eles se acham atraentes, isso não é pecado, mas eles precisam ficar focados no exterior o tempo inteiro? Criar profundidade é muito importante.
Por que a fantasia odeia as mulheres?!
Vamos acabar essa conversa falando um pouco de fantasia? Muitas mulheres agora estão escrevendo fantasia — já era tempo! E essas mulheres tem um desafio, por que a fantasia odeia as mulheres, ponto final.
Então, primeiro, eu amo ler fantasia, e por isso digo — precisamos de livros com personagens femininas fortes. Precisamos de mais Jogos Vorazes, e menos Crepúsculo.
Mas, de verdade, a fantasia odeia as mulheres.
Spolier alert – vou desabafar sobre as minhas frustrações acerca de O Senhor dos Anéis nesse post. Me julguem.
Infelizmente, meus livros favoritos de fantasia são os piores nesse sentido, O Hobbit e Os Senhor dos Anéis. O Hobbit não tem nenhuma mulher, e Os Senhor dos Anéis pelo menos tem a Galadriel e a Eowyn para fazer alguma coisa. Mas é só isso mesmo. Quem salva o dia é — naturalmente — os rapazes.
E se formos analisar a Eowyn, ela não tem um desenvolvimento na narrativa. Ela basicamente somente é rejeitada por Aragon e depois começa a gostar do Faramir. Para quem viu só o filme, saibam que todas as falas da Arwen são somente para pagar o cachê da Liv Tyler, porque no livro ela não fala basicamente nada.
Game of Thrones, provavelmente, foi a série que melhor retratou mulheres na fantasia (e evidentemente eu estou ignorando aquela temporada final). Game of Thrones oferece uma boa seleção de personagens mulheres que são fortes a sua maneira. Isso é interessante. Mas infelizmente Game of Thrones é a exceção. E quando foi adaptado para a TV, a mulherada começou a ser estuprada muito mais do que nos livros. Olha o “olhar masculino” aí de novo.
A fantasia é tão terrível com as mulheres que para ser heroína em uma fantasia, a garota precisa ser basicamente um homem com peitos. Muitas das fantasias antigas, quando apresentavam heroínas, elas eram basicamente uma versão feminina dos heróis. Eram fortes, matavam dragões, só que faziam isso de lingerie. A mulher maravilha, por exemplo, é forte daquele jeito por quê? Ok, podemos falar das amazonas, mas elas eram muito diferentes da mulher maravilha dos quadrinhos.
Dar características consideradas “masculinas” como força física para as mulheres na esperança de que elas fiquem mais “fortes” não acontece só na fantasia — antes fosse! Mas muitas vezes lemos romances em que as mulheres agem exatamente como os homens sexualmente, por que isso tecnicamente as fazem “fortes”. Será que reproduzir um comportamento masculino degradante realmente empodera alguém? É algo a se pensar...
Muito mais pode ser dito sobre as mulheres na narrativa, então quem sabe podemos ter um outro post sobre Girl Power? Por enquanto, ficamos por aqui!
Deixe seu comentário! O que é girl power para você?
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