Neo... Neo... siga o coelho branco. Quem já viu Matrix deve se lembrar dessa fala. Quando o personagem do Keanu Reeves começa a se perguntar o que é a Matrix, alguém misterioso diz para ele seguir o coelho branco. Outra personagem muito famosa que seguiu o coelho branco atrás de respostas é Alice, de “Alice no país das maravilhas” de Lewis Carroll, publicado em 1865.
Em poucas palavras, isso é intertextualidade — quando um texto (leia aqui filme, obra literária, etc) é mencionado em outro, ou baseado em outro. O grau de intertextualidade, isto é, o quanto o texto depende do outro para fazer sentido, varia. Mas basicamente, a intenção é a mesma.
Intertextualidade é a relação que existe entre os textos, e ela pode incluir menções diretas, alusões, convenções literárias, imitação e paródia, e pode até ser feita de modo inconsciente pelo autor. Tipo quando a gente fala “ser ou não ser, eis a questão” sem atinar para o fato de que essa frase famosa está inserida num solilóquio de suicídio feito por Hamlet — e pode ser traduzida como “vou me matar ou não?”. Mas virou sinônimo de “faço isso ou não faço?” e está agora inserida na cultura contemporânea, eu diria, sem nenhum vestígio do suicídio original.
A teoria cultural diz que os textos são construídos através de sistemas, códigos, e tradições de outros gêneros, tipo filmes, música, arte, e da cultura em geral. O texto sem si tem significado, mas ele também está inserido em uma série de “culturas”.
Então, quando lemos, mais do que somente interpretar o texto literário pelo que ele é, precisamos nos ater a essas relações que os textos trazem com outros elementos culturais. Tanto que, encontrar essas relações, segundo a teoria cultural, é interpretação. Ler, portanto, é como navegar por textos diversos.
Por isso que, quando Neo sai em busca do coelho branco, sabemos que ele está indo em direção a descobertas malucas, assim como Alice.
A pergunta que não quer calar é... Quando que deixa de ser intertextualidade e se torna plágio?
Já parou para pensar nas similaridades entre o Rei Leão e a tragédia de Hamlet? Irmãos em rivalidade pelo trono, o irmão mata o rei, o filho precisa fazer justiça pelo pai... Isso é intertextualidade ou plágio?
Intertextualidade não é plágio, mas pode ser. Viver no mundo pós-moderno, fluido, como o nosso, não é fácil. Tudo está sempre em mudança — inclusive as nossas teorias. Mas, vou tentar mesmo assim.
É muito comum ver as pessoas citando Shakespeare em suas artes. Podemos até dizer que todo o tropo dos casais “de inimigos a amantes” é uma referência “A Megera Domada”. Assim como o tropo do “amor à primeira vista” uma referência a “Romeu e Julieta”. Isso é plágio? Não. Isto é intertextualidade. O próprio Shakespeare copiava coisas — eu não me canso de lembrar as pessoas disso!
Quando temos um filme que reproduz uma ideia — por exemplo, O Rei Leão, da Disney, que faz uma releitura de “Hamlet” (que por sua vez foi adaptada de Deeds of the Danes” escrito por Saxo Grammaticus) — seja por motivos de paródia, ou simples adaptação, isso não é plágio. É intertextualidade.
Em outras palavras, os romances eróticos de CEOs com mulheres virgens que estão em todas as esquinas da Amazon também não são plágios. Eles fazem parte de uma cultura e uma experiência de mundo. E talvez ainda podemos considerar uma simples adaptação de romances Sabrina, que sempre tinham um homem bem poderoso encontrando uma mulher que precisava ser “ensinada” em todos os sentidos. Em filme pornô tem muito desse tropo também — o estilo professor-aluna.
Isso não é para desmerecer os romances eróticos. Podemos fazer isso com qualquer outro tipo de livro. As fantasias de Tolkien são influenciadas pelos romances medievais, em que o rei era sempre um cara foda que saía matando dragões — mas nem sempre eram dragões na literatura medieval, eram serpentes grandes, enfim.
Isso é diferente para o mundo acadêmico. No mundo dos artigos científicos, você deve citar a fonte da qual está se baseando. Sempre. Mas esse é um mundo muito mais jovem que o mundo da literatura — um mundo que começou com regras anti-plagio muito claras.
Já na literatura e nas artes, as camadas e as intertextualidades de um texto é o que deixa tudo muito mais interessante e não se cansa de dar trabalho para os leitores.
à teoria cultural nos mostra que interpretar um texto é relacionar esse texto com outros textos. Agora, onde o autor entra aí? É importante pensar na “intenção do autor”?
Já notou que, às vezes, lemos um texto quando jovens e odiamos. Depois, esse mesmo texto passa a ter um significado completamente diferente para nós quando adultos? Ou então, por que alguns textos são tão maravilhosos para algumas pessoas, e para outras são péssimos? Isso tudo está relacionado com intertextualidade e a morte do autor.
Tudo bem, parece errado. Matar o pobre do autor... mas vamos lá...
Se você já ouviu falar de Roland Barthes, então você já ouviu falar da tal “morte do autor”. Barthes acreditava que os leitores nunca vão pegar todos os significados de um texto por causa dessas relações textuais — a intertextualidade. Então, não há como responsabilizar o autor pelas diversas possibilidades de intertextualidade que podemos encontrar em um texto.
Quando nos liberamos da “intenção do autor”, então nos liberamos de tentar entender o texto literário como se ele tivesse um significado fixo. Os leitores podem ir para onde quiserem.
Por isso que se você não gostou de “Dom Casmurro” de Machado de Assis quando leu na escola aos 14 anos, não significa que não vai se identificar com o ciúme obsessivo de Bentinho na sua vida adulta. O texto se constituiu no momento da leitura. É a carga de experiência de vida, de leitura, cultural de cada leitor que vai determinar o que aquele texto vai ser.
“Matar”, por assim dizer, o autor é um alívio. Isso significa que podemos achar um diário jogado na rua, sem dono, sem informações sobre o autor, e ainda sim fazer sentido — e muito sentido — daquilo que lemos. Está na nossa própria capacidade de ler e interpretar o mundo a nossa volta.
Alusões, Pastiche e paródias
Quando usamos de intertextualidade no texto, geralmente fazemos uma dessas três coisas. Podemos fazer uma alusão a outro texto, indiretamente ou diretamente. Um pastiche, usando elementos do texto para compor outro texto. Ou uma paródia, satirizando textos.
Aqui vai alguns exemplos de como eu usei intertextualidade conscientemente em “Eva. Vanguarda”.
Angelina Johnson é o nome da artilheira do Quadribol de J.K. Rowling. É também a colega de apartamento de Eva. Foi consciente, queridos.
Angelina, inclusive, é uma personagem que faz várias alusões aos personagens de Jane Austen, como nessa frase: “É uma verdade universal que um homem solteiro que possui uma fortuna está à procura de uma esposa”. Angelina faz uma alusão a primeira frase de “Orgulho e Preconceito” para expressar suas dúvidas sobre o estado civil de um dos personagens da trama.
Esse tipo de estratégia narrativa é chamada de Alusão. Isso acontece quando fazemos referência a personagens, cenas, enredo, entre outras cosias, de outros textos.
O que podemos fazer também é um pastiche — isto é, uma colagem de frases, ou passagens de outros autores para formar algo diferente. Você pode inclusive usar personagens, enredo, e qualquer outra coisa para fazer isso. Mas atenção para a intenção aqui. O pastiche não ridiculariza, como os Simpsons fazem. Isso é uma paródia. O pastiche respeita e presta uma homenagem mesmo ao “original” — como o Rei Leão e Hamlet. Fan fictions também são pastiche!
Acho que o melhor filme para se entender intertextualidade é Shrek. Shrek é uma paródia de todas as histórias de contos de fadas que escutamos e assistimos desde crianças. Como paródia, faz referências aos contos de fadas, usa as convenções com a intenção de distorcê-las e assim frustrar (ou não) nossas expectativas. Tipo, a princesa se torna ogra no fim das contas, e não se casa com o “rei”.
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