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  • Foto do escritorAne Caroline Costa

Você não escreve sozinho


Sinto muito, não escreve.


Sempre quando eu tenho algumas discussões literárias interessantes no Instagram, eu fico com vontade de escrever um post. A dessa semana foi sobre isso - escrever sozinho. Às vezes, quando não se tem um background forte na literatura, tem-se a ideia ilusória de que o escritor é um tipo de Shakespeare, com um talento nato que ele compartilha com as pessoas. Quando se examina a literatura mais a fundo, a gente percebe que não! As histórias não estão sozinhas. Shakespeare mesmo baseia praticamente toda a sua obra em outras mais antigas (acredite), que por sua vez se basearam em outras histórias, que por sua vez se basearam na tradição oral, e por aí vai. Alguém, lá trás, deve ter começado a contar história, tipo para se gabar de ter matado um dragão (que na verdade devia ser um jacaré que virou dragão quando Beowulf foi escrito). O caso é que você escritor nunca está sozinho. Você acha que a sua ideia mirabolante saiu da sua genialidade? Desculpe, mas isso é pura inocência sua e um ego inflamado mesmo. E está tudo bem, um pouco de ego para o escritor é e essencial.


Então aqui vão cinco razões para te convencer que você não está escrevendo sozinho, mesmo se você está sozinho no seu espaço de criação.

  1. Escrever não é social. Primeiramente, eu não estou aqui para te convencer que escrever é algo social, por que eu não acho que é. Mas também vejo que isso está mudando, e cada vez mais as pessoas estão escrevendo juntas, montando grupos de escrita (eu faço parte de um na faculdade para escrever artigos acadêmicos). Acho que isso mudou porque nós aprendemos muito sobre escrita nesses milênios de produção literaria - escrever é um processo. Você se torna melhor quando escreve, quando recebe feedback, e quando reescreve. Como Stephen King diz, toda escrita é reescrita. Mas só por que você não escreve socialmente, não quer dizer que você está escrevendo sozinho.

  2. Pesquisa. Não tem como fugir disso mais. Todo mundo faz pesquisa. Tenho visto tanto meme falando “Shakespeare escreveu king Lear na quarentena, o que você fez?” Gente, cuidado com o fake News! Primeiro não tem como saber disso, pq a vida do Shakespeare é super obscura. Há muitas gaps na história, e os historiadores ficam tentando preencher as lacunas com fatos interessantes (se não acredita em mim, vai ver qualquer documentário ou biografia de Shakespeare). Ele é um mistério, e por isso tanta gente acha que ele nunca existiu. Segundo, se ele de fato escreveu, pode ter certeza que ele estava copiando de algum lugar! Gente, Shakespeare é pura cópia. Ele escrevia peças para a galera, o motivo da veneração desse homem é porque os textos sobrevivem até hoje e são realmente histórias muito boas. E naquela época, tava tudo bem copiar coisas dos outros. Nos dias de hoje, Shakespeare estaria cheio de processos. Ainda não acredita em mim? Google: “Deeds of the Danes” escrito por Saxo Grammaticus por volta do ano de 1200; é Hamlet! Shakespeare fez sim mudanças na história, mas o básico está lá. “Holinshed’s Chronicles” era muito famoso no tempo de Shakespeare, e ele se inspirou para escrever Macbeth. Há mudanças importantes, é claro, mas isso mostra que a literatura é cíclica. Só mais um - Romeo and Juliet era um poema de Arthur Brooke, que foi por sua vez inspirado por Matteo Bandello. Eu vou parar de falar, porque vcs vão achar que eu odeio Shakespeare (de fato sim, não gosto, mas por outros motivos). Mas acho que vocês pegaram o ponto.

  3. Pesquisa parte 2. Esse ponto também é sobre pesquisa, porque nós não podemos mesmo ignorar isso. Não dá pra ignorar todas as pesquisas que a gente faz e simplesmente dizer que o processo de criação “acontece.” Nada acontece. É um pouco presunçoso achar que tudo vem de dentro das nossas entranhas! Enfim. Mesmo quando eu faço pesquisa sobre o tipo de governo no meu mundo de fantasia, eu estou participando ativamente de um conjunto, um entendimento de mundo que é mútuo. O escritor deve fazer isso, é claro, colocar ordem ao caos é uma das propostas da literatura.

  4. Senta e escreve. Por fim, a gente senta e escreve. Vê as palavras se transformarem em frases e sente aquele poder supremo. Mas fazemos isso sozinhos? Não. Você pode estar escrevendo com as suas mãos, mas o seu cérebro está lá trabalhando, trazendo pra sua escrita tudo q você já leu, já pesquisou, e tudo que já viveu. O ato de escrever em si se baseia no que você aprendeu lendo e escrevendo. Todo escritor tem um mentor espiritual na escrita, alguém que a gente admira a técnica e a maneira de contar a história. E por sua vez, esses heróis literários tem seus próprios heróis. A criatividade individual não pode ser menosprezada, mas não dá para negar a inflência que outros trabalhos tem no seu processo de criação.

  5. Tradição literária. Por fim, vamos ao que interessa. Você não escreve sozinho pois está inserido em uma tradição literária. Antes de sermos escritores, somos leitores. Sim, o seu livrinho sobre o coelhinho aos 4 anos também faz parte da tradição de livros infantis com desenho de bicho. As chances são que você ouviu falar de dragão antes de ler qualquer coisa sobre dragão. Vc ouviu falar do beijo do amor verdadeiro antes de ler ou escrever sobre romance. E se vc não acredita em mim, leia TS Eliot que claramente diz que o escritor deve sim tentar inovar, mas se baseando no passado. Não imitar, mas inserir-se em uma narrativa. Inovar significa resignifcar e nada mais. Somente porque você não está fazendo isso sozinho, não significa que isso é ruim, ou que não é importante. Simplesmente aumenta a sua responsabilidade em oferecer aos seus leitores algo de qualidade que (quem sabe) vai entrar para a história da literatura.


Essa é uma discussão maravilhosa, e eu estou louca para continuar falando disso. Não quero desmerecer o “talento” de ninguém (se é que isso existe - parece mais uma invenção do nosso passado humanista-individualista). Mas já parou para pensar no que você traz com você quando abre a tela do Google docs?



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